Com recursos cada vez mais escassos, a indústria brasileira amplia sua atenção sobre novos modelos de produção e atuação
A sustentabilidade, de forma geral, é um tema que faz cada vez mais parte do cotidiano de empresas dos mais diversos segmentos. Nos últimos anos, no entanto, o consumidor tornou-se figura mais consciente, atenta aos impactos que seu estilo de vida gera ao Planeta, e essa mudança de paradigmas fez com que as marcas tivessem de adotar práticas sustentáveis na prática e não apenas no discurso, de modo a demonstrar ao público e ao mercado os valores que lhes são caros.
Nesse sentido, gigantes do mercado global têm se dedicado cada vez mais ao conceito de economia circular, que pressupõe uma verdadeira ruptura com o modelo econômico linear de produção – consumo – descarte. Dados da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Onudi) reportam que, nos últimos 30 anos, o avanço tecnológico e o aumento da produtividade dos processos permitiram a extração de 40% mais de valor econômico das matérias-primas. Nesse mesmo período, entretanto, a demanda aumentou 150%, evidenciando o descompasso entre os dois índices.
A economia circular propõe um crescimento econômico associado a um ciclo de desenvolvimento positivo contínuo, com o objetivo de preservar e aprimorar o capital natural, otimizar a produção de recursos e minimizar riscos inerentes ao sistema de produção, como a administração de estoques finitos e fluxos renováveis.
O conceito não é novo, mas sua difusão tem sido promovida somente nos últimos anos. Em 2018, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) publicou um extenso conteúdo com o objetivo de destacar oportunidades e desafios relacionados à economia circular para a indústria brasileira.
À época, Robson Braga de Andrade, presidente da CNI, ressaltou que a demanda por bens de consumo pressionava as reservas de recursos naturais e que o cenário já era algo de alerta de diversos organismos internacionais.
“Por esse raciocínio, seria impossível prover, para toda a população mundial, o padrão de vida que os países desenvolvidos já atingiram com os recursos naturais disponíveis no planeta. Nesse sentido, é preciso pensar em formas inovadoras de produção e consumo, que considerem a inclusão da base da pirâmide da sociedade global no mercado formal e atendam a demanda crescente por melhor qualidade de vida”, afirmou Andrade.
“Para um país como o Brasil, com uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, nada mais natural do que explorar novos modelos de negócios, que considerem os diversos acordos internacionais e, ao mesmo tempo, promovam o desenvolvimento”, completou.
É nesse cenário que surge e se intensifica o conceito de economia circular. Para a CNI, o primeiro passo para promover a transição da lógica linear para a circular consiste em analisar as oportunidades de inovação nos modelos de negócios das empresas, com o objetivo de criar melhores processos, produtos e serviços. E para que a economia circular ganhe escala e realize todo seu potencial, é preciso criar condições facilitadoras para a transição, com a promoção de educação de melhor qualidade, políticas públicas específicas e infraestrutura voltada à circularidade e tecnologias inovadoras.
Quem estuda a temática da economia circular destaca, inclusive, que a adequação da economia circular não representa uma opção e, sim, uma questão de sobrevivência. Trata-se de uma conclusão lógica de que o ser humano, em número cada vez maior no planeta, não pode continuar tratando como infinitos os recursos que sabidamente terão um fim próximo. Quem defende o modelo da economia circular o faz por considerar essa transformação urgente, irreversível e inevitável.
E quais seriam, na prática, os benefícios promovidos pela economia circular? De acordo com os organizadores do Circular Summit, evento digital realizado no último mês de agosto, são esses:
- Ganhos econômicos a médio/longo prazos
- Maior eficiência operacional (vantagens desde o design de produto)
- Acesso a novas tecnologias e inovações
- Acesso à melhor política fiscal e tributária com possibilidade de melhores acordos comerciais
- Perenidade dos negócios assegurando investimentos e a fidelização de clientes
- Maior eficiência energética (tornando possível ganhar escala de maneira sustentável)
“O ganho em competitividade com a Economia Circular deve ocorrer com a redução dos custos e, principalmente, com a maior geração de valor. Entre as oportunidades de redução de custos pode-se destacar: melhor aproveitamento dos materiais, redução dos desperdícios, maior efetividade nos sistemas de produção e uso de um produto como serviço, entre outros”, avalia a CNI em sua publicação.
Para Regina Magalhães, diretora do Segmento Automotivo e Infraestrutura de Transportes da Schneider Electric para a América do Sul, e participante de um dos painéis do Circular Summit, o setor automotivo poderá alavancar o movimento de economia circular na retomada econômica do período pós-pandemia.
“O segmento tem uma cadeia de valor muito grande, envolvendo, por um lado, indústria de metais, plásticos, eletrônicos, tecidos, borracha, dentre outros. Por outro, serviços de manutenção, financeiros, comércio etc. É uma indústria que tem grande impacto em quase todos os outros setores e o aumento da economia circular pode estimular o uso do modelo em toda a economia”, afirma Regina.
“A indústria automotiva tem uma cadeia de valor muito longa. Portanto, um dos grandes desafios é fazer com que a economia circular permeie toda essa cadeia, passando pelos mais diversos fornecedores, distribuidores, concessionárias”, completa a executiva.
Com dados da Ellen MacArthur Foundation, a CNI destaca também que as estimativas na Europa mostram que práticas associadas à economia circular podem trazer redução de custos de mobilidade entre 60% e 80% a partir de sistemas e soluções que usem energias renováveis. Práticas que fomentem o reuso de materiais podem reduzir o espaço construído de 25% a 35%, enquanto as práticas que reduzem o desperdício no setor de alimentos têm o potencial de gerar entre 25% a 50% de economia.
“No Brasil, várias oportunidades já identificadas no setor industrial podem ser exploradas com novos modelos de negócios, design, recuperação dos materiais, além da economia informal existente. Entre elas pode-se citar o potencial: do setor eletroeletrônico, com a recuperação dos materiais e novos serviços; de construção civil, com a redução da quantidade de resíduos gerados; têxtil, com novos materiais e cadeias circulares de valor, e plástico, com grandes oportunidades de redução e recuperação, além de novos materiais”, explica a CNI.
Assim, dentre os diversos benefícios esperados a partir da adoção da economia circular, podemos ressaltar também a diferenciação no mercado – frente a concorrentes que mantêm uma atuação tradicional – e o acesso a novos mercados ou nichos ainda não explorados.
“Empresas com visão de longo prazo, com foco na inovação e na geração de valor, como apregoadas pela Economia Circular, apresentam melhor desempenho econômico que as demais. Tais benefícios representam, em média, ganhos de 36%, com receita 47% superior e lucro 81% maior”, completa a Confederação em sua publicação.
Transição
A transição entre um mundo linear para um circular não é simples, e tampouco será realizada da noite para o dia. De acordo com a CNI, algumas mudanças devem ser estruturadas no mindset de empresas e organizações para que o processo de transição possa progredir.
No âmbito do escopo, por exemplo, é preciso ter uma visão mais ampla, indo além das melhorias de eficiência de processo. Por sua vez, a premissa de fazer mais com menos não é suficiente para conquistar os benefícios gerados pela economia circular. É preciso considerar também as consequências das atividades desenvolvidas.
Outro destaque da CNI: ainda que o foco de qualquer negócio seja o lucro, na economia circular ele será obtido através da inovação e geração de novos valores. “A proposta de valor com foco em redução de custos é uma estratégia típica da economia linear, com limitações e geração de externalidades negativas; em uma Economia Circular, a proposta de valor considera o valor agregado nos recursos e preza por mantê-los no mais alto nível e por mais tempo”, explica a Confederação na publicação.
Necessário ressaltar a mudança relativa às personas. A economia circular considera outras personas além dos acionistas, entendendo que sociedade, cliente e fornecedor são partes interessadas do negócio. Agregam, portanto, valor e qualidade aos produtos, e incluem as cadeias reversas, fornecendo informações importantes para o design de produtos inovadores e circulares.
Ciclos reversos
Também estão estritamente relacionados à economia circular os ciclos reversos. Os ciclos reversos são os responsáveis por “fechar o ciclo” da economia circular às empresas, permitindo que estas recuperem e adicionem valor aos produtos e componentes comercializados.
O mercado conta atualmente com diversas formas de recuperação dos produtos com diferentes níveis de reaproveitamento. Entre eles:
- Remanufatura: busca recuperar os produtos com a mesma qualidade e garantia de um produto novo;
- Recondicionamento: tem o objetivo de fazer operações simples de reparo de um produto para adequá-lo a novas necessidades;
- Manutenção: visa à estender a vida de um produto, e
- Reciclagem: visa à recuperação dos materiais.
“Essas estratégias formam e dependem de operações de ciclo reverso, em que os produtos fazem o caminho inverso àquele da manufatura e entrega para o mercado consumidor. Ciclos reversos podem ser compostos por etapas de manutenção, logística reversa, desmontagem, reprocessamento, montagem e redistribuição”, explica a CNI.
“Outra característica importante para os ciclos reversos é a possibilidade de combinação de diferentes estratégias de acordo com os materiais, componentes e produtos. Por exemplo, é possível fazer o ciclo reverso de um equipamento eletrônico e definir diferentes estratégias para suas partes desmontáveis a partir de uma análise das características de qualidade do produto e seus componentes – combinando, assim, a remanufatura do equipamento, com manutenção de certos componentes, recondicionamento e destinação à reciclagem de outros. No caso de nutrientes biológicos, é possível pensar o uso dos materiais em múltiplas aplicações ao longo do decaimento da qualidade do material, com o uso em cascatas, antes de retorná-lo, de maneira segura, à biosfera para regenerar o capital natural”, complementa.
Ao longo das últimas décadas, a sustentabilidade deixou de ser um diferencial para determinadas empresas para se tornar algo obrigatório em mercados cada vez mais competitivos. Já não se trata de “apenas” apostar na sustentabilidade como forma de enriquecer a reputação da empresa, mas de se atentar às demandas e exigências de consumidores que entendem as práticas sustentáveis como partes naturais dos processos. Neste momento, o diferencial entre os players está relacionado, de fato, com a velocidade e naturalidade em que ocorre a transição entre economia linear e circular.
Escrito por: Redação