Setor de autopeças anseia por retomada em 2022, com o mercado que volta a valorizar o carro próprio
Traçar previsões, prognósticos e análises sobre oportunidades futuras tornou-se tarefa das mais difíceis em todos os setores da indústria e do comércio, graças, principalmente, às consequências sem precedentes geradas pela pandemia de Covid-19. O que começou como algo que afastaria as pessoas de seus ambientes de trabalho e convívio social por duas ou três semanas, tornou-se uma crise que, no Brasil, inicia seu terceiro ano ainda sob muitas incertezas, medos e anseios da população em geral.
Com o setor de reposição automotiva não poderia ser diferente. Uma análise de perspectiva para 2022 precisa levar em consideração uma série de fatores, fazendo com que a avaliação ora tenda para o espectro positivo, ora caminhe para conclusões negativas.
No âmbito da valorização do setor de reposição, é preciso considerar o grave impacto que a pandemia teve sobre a venda de veículos novos no Brasil. Segundo dados consolidados pela ANFAVEA (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), o número de veículos novos licenciados em 2021 foi apenas 1% superior ao de 2020: 1,86 milhão contra 1,84 milhão. Bem abaixo, no entanto, do que os números registrados no período pré-pandemia, com 2,49 milhões em 2019 e 2,25 milhões em 2018.
Os baixos índices de licenciamento foram refletidos também no primeiro mês de 2022. De acordo com a Fenabrave (Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores), a indústria de veículos fechou o primeiro mês de 2022 com o pior janeiro em vendas em 17 anos. Foram 126,5 mil unidades licenciadas, considerando carros de passeio, utilitários leves, caminhões e ônibus.
São muitos os motivos que levam o brasileiro a suspender ou adiar a compra de um carro novo. De imediato, verifica-se que as dificuldades das montadoras em entregar os veículos em um prazo adequado desanimaram boa parte do mercado consumidor, que não queria esperar 50, 60 e até 70 dias para receber seu produto. Foi preciso entender, ao longo da pandemia, que esse cenário de espera não era motivado por um aumento da demanda, mas por problemas no fornecimento de componentes como os semicondutores, cuja demanda cresceu exponencialmente durante a crise.
A necessidade de transformação digital das empresas em meio ao período de isolamento social em todo o mundo fez com que a oferta de componentes eletrônicos no mercado não fosse suficiente para atender diversos setores. Com a escassez desses materiais, o brasileiro passou a não só ter de esperar mais para receber seu carro zero, como também foi necessário desembolsar um valor muito maior na aquisição do bem. Uma relação de oferta e procura pura e simples, afinal.
Em meio a este cenário, uma das análises mais propagadas na reposição automotiva brasileira era de que os consumidores, de forma racional, iriam priorizar a manutenção de seu veículo usado. Afinal, a troca do bem por um modelo novo se tornava cada vez mais inviável. Assim, esperava-se por uma natural valorização da manutenção veicular, favorecendo os resultados dos players do setor em um mercado pujante.
Esse entendimento segue válido. Ou seja, diante das dificuldades do brasileiro em adquirir um produto novo, a manutenção preventiva e preditiva se torna uma necessidade de todos que já contam com um veículo usado. O principal problema é que o brasileiro não deixou de adquirir um veículo novo somente pelo aumento no prazo de entrega. A crise financeira que acomete milhões de famílias no País foi um duríssimo golpe no poder de compra de boa parte dos consumidores, e isso afetou também a ideia de cuidar da manutenção de um veículo usado.
Crise financeira
A crise financeira que atinge milhões de famílias em todo o Brasil permanece e exige uma resiliência sem precedentes dos brasileiros. Em sua primeira edição em 2022, o boletim Focus do Banco Central aponta para um crescimento ínfimo de 0,36% do PIB (Produto Interno Bruto) para este ano. Um resultado muito aquém do esperado, principalmente se considerarmos que esse aumento já se daria sobre uma base baixa e fortemente impactada pela pandemia.
A expectativa sobre a taxa de juros (Selic) também é de crescimento, passando de 9,25% ao ano (dezembro de 2021) para até 11,5% em 2022. Especialistas críticos a esse aumento afirmam que a inflação no Brasil tem sido provocada pela forte alta das commodities e do câmbio, e não a um suposto aumento de demanda.
De fato, não é necessário ser um gênio da economia para perceber que o poder de compra da população brasileira, como um todo, foi sensivelmente reduzido nos últimos meses. Ao ter o crédito dificultado, mediante taxas de juros altíssimas, o consumidor decide suspender ou pelo menos adiar o plano de trocar seu usado por um veículo novo.
A desvalorização do real frente ao dólar é outro indicativo claro das dificuldades que o brasileiro tem enfrentado para sobreviver no País. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a renda per capita do cidadão brasileiro foi, em média, de US$ 6.600 em 2021. Cinco anos antes, em 2016, era de US$ 9.300. Ou seja, uma queda de cerca de 30%.
O problema de renda naturalmente impacta o desejo daqueles que gostariam de adquirir um veículo novo, mas gera consequências também para aqueles que dedicam sua atenção (e economias) à manutenção de seu veículo usado. O consumidor acaba priorizando a reparação de itens considerados urgentes no curto prazo, sem levar em consideração os riscos atrelados a uma manutenção de médio e longo prazos adequadas.
O brasileiro viu, ao longo da pandemia, uma verdadeira supervalorização de veículos novos e usados. Além de questões relacionadas à falta de insumos e variações excessivas entre oferta e demanda, o mercado precisou lidar com uma forte tributação sobre os automóveis. Para efeitos de comparação, os impostos cobrados atualmente sobre carros novos representam entre 40% e 50% do seu valor. Em outros países, o índice não chega a 20%.
A questão tributária afeta, inclusive, o segmento de usados. A supervalorização de determinados modelos fez com que os consumidores, em alguns casos, vendessem seus veículos por valor substancialmente maior do que aquele que pagaram na compra.
Não é de conhecimento geral, mas essa valorização é fortemente tributada no Brasil. Ao comprar um veículo por R$ 50 mil e revende-lo anos depois por R$ 60 mil, o consumidor deve pagar 15% de imposto sobre o lucro obtido. Nesse caso, R$ 1,5 mil. Trata-se de uma questão que, em alguns casos, fez muitos brasileiros repensarem a troca de seus veículos, impactando o mercado como um todo.
Recuperação do setor e veículo próprio como desejo
A recuperação e o fortalecimento do setor de reposição automotiva a partir de 2022 depende do cuidado que deve ser oferecido ao consumidor final por todos os seus players. O consumidor precisa entender, seja através de campanhas em diferentes canais ou mediante um assessoramento mais qualificado e completo em seu atendimento (físico ou virtual), que há riscos muito grandes associados ao uso de peças sem garantia ou com origem duvidosa, à falta de manutenção preventiva no veículo e a à priorização de determinados serviços frente a outros no cuidado com seu carro.
Novamente, isso passa por todos os players do setor. Trata-se de um movimento amplo, de valorização e fortalecimento do setor da reposição. Movimento este que casa, inclusive, com outro cenário também influenciado pela pandemia: o de valorização do veículo próprio.
Nos últimos anos (principalmente na pré-pandemia), o Brasil viu chegar ao seu mercado um movimento quase ideológico que já mostrava força principalmente na Europa: a desvalorização do veículo próprio.
Políticas ambientais contra combustíveis fósseis, novas políticas de mobilidade em favorecimento ao uso de bicicletas e o crescimento desenfreado dos chamados “apps de transporte” fizeram com que os jovens de diversos países europeus repensassem a sua relação com o carro próprio.
No Brasil, esse movimento foi principalmente ancorado em dois fatores: a ineficácia do transporte público e a praticidade/economia que seriam geradas com o uso dos “motoristas de aplicativo”. A pandemia – e a crise econômica por ela gerada –, no entanto, reverteu esse quadro. O desemprego crescente fez com que boa parte da população corresse para atuar com os aplicativos de transporte e garantir seu sustento diário. Já os aplicativos usaram estratégias agressivas para conquistar o público (descontos) e novos motoristas (ganhos elevados e flexibilidade na carga horária), formando uma rede que, até determinado ponto, funcionou.
Com o tempo, o número de motoristas em excesso fez com que os ganhos dos profissionais fossem reduzidos sensivelmente. A alta no preço dos combustíveis também fez com que muitos desistissem da ocupação em meio à pandemia. De acordo com dados da Associação de Motoristas de Aplicativos de São Paulo (AMASP), houve redução de cerca de 25% no número de trabalhadores desse tipo em 2021.
Com um serviço menos vantajoso aos motoristas e mais caro e menos prático aos usuários, os aplicativos de transporte deixaram de fazer parte do dia a dia de boa parte da população das grandes metrópoles brasileiras. Sem um serviço de transporte público realmente eficaz, o brasileiro voltou seus olhos ao…carro próprio.
O movimento de desvalorização do veículo próprio no Brasil, portanto, nunca foi forte tal qual na Europa. O desafio do setor automotivo no País nos próximos anos será criar um elo mais forte com os consumidores mais jovens, formados em uma sociedade que agora convive com serviços de compartilhamento ou aluguel de carros com maior naturalidade.
Apesar do surgimento de novas variantes do coronavírus, o Brasil segue seu programa de vacinação para ampliar o percentual de sua população protegida com todas as doses necessárias do imunizante. Aos poucos, muitas empresas começam a retomar a rotina presencial de trabalho, ainda que adotem um regime híbrido de trabalho.
As dificuldades de acesso ao crédito seguirão presentes no Brasil em 2022, gerando um cenário de desafios para as marcas que precisam ampliar a venda de veículos novos. Graças aos prejuízos gerados nos primeiros anos da pandemia, as montadoras sabem que suas margens estão muito estreitas e que serão necessários verdadeiros malabarismos para conquistar novos consumidores.
Para o setor de autopeças, o desafio está em fortalecer a narrativa relativa à manutenção adequada dos veículos. Ou seja, mesmo diante de uma grave crise econômica, o brasileiro não pode se dar ao luxo de priorizar a manutenção apenas de determinados componentes, em detrimento de outros igualmente importantes.
Não se trata também de abandonar os motoristas de aplicativo. Ainda que parte do contingente tenha deixado o serviço, milhões de brasileiros ainda atuam dessa forma e exibem demandas muito específicas para a manutenção de seus veículos. Para esse público, o tempo de entrega acaba sendo ainda mais importante do que para o “consumidor comum”.
É preciso pensar também em parcerias com empresas de aluguel de carro nas grandes metrópoles. Para esse grupo, a correta e adequada manutenção da frota tem caráter financeiro e pode ser um diferencial importante frente a outros players do mercado. Os desafios não vão acabar em 2022, mas quem souber extrair os ensinamentos gerados pelos dois primeiros anos da pandemia certamente terá uma visão muito mais clara dos passos a seguir nesta nova temporada.
Escrito por: Redação