Greve dos caminhoneiros apenas evidencia os buracos que o Brasil precisa resolver na área
A greve dos caminhoneiros que tomou conta do noticiário nacional nos últimos dias de maio provocou uma série de consequências em diversos setores produtivos do Brasil. A paralisação gerou desabastecimento de combustíveis e produtos alimentícios em todo o País, sendo que algumas regiões apresentaram cenários de maior dificuldade diante da dependência do transporte rodoviário.
Não passou incólume, entretanto, o posicionamento do setor automotivo em relação ao cenário que se instaurou no Brasil nas últimas semanas. Sem entrar no mérito das reivindicações dos caminhoneiros, foi importante mostrar ao País que as indústrias foram fortemente afetadas em toda a cadeia produtiva. Não se trata de promover o caos, mas de justamente chamar a atenção para problemas que vêm sendo destacados por lideranças do setor automotivo há anos. Problemas que, basicamente, concentram-se na logística para atuar de forma adequada e sustentável em um país de proporções continentais.
Durante os dias mais delicados da greve dos caminhoneiros, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) destacou, em nota enviada à imprensa, que as linhas de produção instaladas no Brasil estariam todas paralisadas a partir do dia 25 de maio. Na ocasião, a entidade fez questão de ressaltar que a indústria automobilística gera cerca de R$ 250 milhões de impostos por dia e que, consequentemente, a paralisação das empresas do setor resultará em forte impacto na arrecadação brasileira neste ano.
“A greve dos caminhoneiros afetará significativamente nossos resultados, tanto para as vendas quanto para a fabricação e exportação”, declarou a Anfavea, em nota. A distribuição de autopeças, tanto para as montadoras quanto para a reposição, também foi afetada. Afinal, todo o conteúdo distribuído pelo País ficou parado nas estradas ou nos centros de distribuição.
Em situações como esta, uma análise simplista sempre busca quantificar o prejuízo gerado a cada setor. Certamente, o setor automotivo enfrentará prejuízos decorrentes do cenário em que o País se transformou durante os dias de paralisação.
No entanto, mais importante que determinar o valor exato das perdas, é entender que a logística precisa ser encarada com maior atenção pelo governo. Até mesmo porque o prejuízo gerado pela greve foi apenas o estopim de uma situação que já causa perdas aos setores produtivos e que seguirá causando caso nada seja feito.
Problema antigo
Os desafios envolvendo a logística de atender a diferentes regiões brasileiras são antigos. Em um setor como o de reposição automotiva, no entanto, se tornam ainda mais evidentes, já que o consumidor “aceita” esperar cada vez menos pela chegada da peça/equipamento de que precisa. O carro não pode ficar parado, mas atender a esta máxima em algumas regiões do País parece se tornar cada vez mais difícil.
Em entrevista exclusiva à revista Mercado Automotivo, Pedro Lopes, presidente da Associação Brasileira de Logística e Transporte de Carga (ABTC), ressaltou as dificuldades impostas àqueles que percorrem o País para entregar produtos dos mais diversos.
“A inadequada infraestrutura rodoviária compromete a eficiência do setor transportador. A reduzida qualidade das rodovias brasileiras eleva o custo operacional do transporte rodoviário de carga, reduz o desempenho dos veículos e a qualidade do serviço prestado”, destacou Lopes, cuja entrevista foi concedida antes mesmo do início do protesto dos caminhoneiros por melhores condições de trabalho.
O presidente menciona ainda dados extraídos da última Pesquisa CNT de Rodovias referente ao ano de 2017. O levantamento é realizado desde 1995, numa iniciativa conjunta da Confederação Nacional do Transporte (CNT), do Serviço Social do Transporte (Sest) e do Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat).
De acordo com os dados, a baixa qualidade da infraestrutura rodoviária aumenta, em média, em 25% o custo do transporte. Ou seja, um quarto do valor atribuído ao transporte de produtos no Brasil pode ser atribuído unicamente às péssimas condições das rodovias federais e estaduais do País.
Para Clésio Andrade, presidente da CNT, qualquer esperança de recuperação da economia brasileira nos próximos anos passa por investimentos significativos em infraestrutura de transporte. É preciso aumentar a eficiência das entregas, promovendo segurança a quem compra, a quem vende e a quem transporta.
“Assegurar a recuperação e a expansão da nossa malha rodoviária mostra-se imprescindível para permitir um crescimento social e econômico com bases permanentes. Depois de atravessar a pior recessão de sua história, o Brasil precisa consolidar o processo de recuperação econômica registrado no segundo semestre de 2017. A expansão dos investimentos em infraestrutura é o caminho mais rápido e seguro para alcançarmos um novo ciclo de desenvolvimento sustentável, com geração de empregos e distribuição de renda para todos os brasileiros”, afirma Andrade, no estudo.
O dirigente ressalta ainda que “a superação das barreiras impostas pelas deficiências de infraestrutura de transporte e logística pressupõe a recuperação e a ampliação da malha rodoviária do País, por onde transitam a maioria das pessoas e grande parte da produção nacional”.
“O último Plano CNT de Transporte e Logística de 2014 sugere um investimento mínimo estimado de R$ 987,18 bilhões no sistema logístico brasileiro”, reforça Lopes. O aporte é alto, mas faz sentido quando se analisa que as empresas brasileiras estão fortemente dependentes da utilização de rodovias – e a greve dos caminhoneiros apenas comprovou essa perspectiva.
“Esse cenário apenas ratifica um dos principais problemas do Brasil, que é a falta de investimento em bons projetos. Além disso, o transporte rodoviário, que é responsável pela maior parte dos deslocamentos de cargas no Brasil, demanda rodovias com melhor qualidade, para o aumento da eficiência logística, de forma que possa contribuir diretamente no processo de recuperação do crescimento econômico brasileiro”, afirma Lopes.
Situação atual
O estudo da CNT verificou diversas irregularidades e problemas em rodovias de todo o País. Interessante apontar, por exemplo, que foi aferida piora tanto nas rodovias sob gestão pública quanto naquelas sob gestão privadas.
“Entre as rodovias geridas pelo setor público, 70,4% da extensão foram avaliadas como regular, ruim ou péssima e 29,6% foram consideradas com estado geral ótimo ou bom. Na pesquisa de 2016, esses percentuais foram 67,1% e 32,9%, respectivamente. No caso das rodovias concedidas, em 2017, 25,6% tiveram o estado geral classificado como regular, ruim ou péssimo; e 74,4% atingiram a classificação ótimo ou bom. No ano passado, esses índices foram 21,3% para regular, ruim ou péssimo e 78,7% para ótimo e bom”, aponta o estudo.
A condição das estradas afeta diretamente o setor automotivo. Não é raro, por exemplo, observar empresas que preferem focar sua atuação em apenas uma, ou no máximo duas, regiões do País. Quem atua em São Paulo, por exemplo, está ciente das dificuldades que enfrentará para levar seus produtos até as regiões Norte e Nordeste, por exemplo.
Esse cenário limita o próprio crescimento do setor, já que concentra a atuação em regiões específicas, ficando muito mais sensível a variações naturais do mercado. Quando consegue se fortalecer e estabelecer raízes em diferentes locais, a empresa tem a oportunidade de obter resultados distintos em cada um deles, aproveitando- -se do regionalismo e das peculiaridades de cada Estado brasileiro. Se uma região vai mal, a saúde financeira da companhia não é comprometida, já que pode apoiar–se em outras unidades.
Como chegar a essas regiões, no entanto, se as estradas só pioram? A conclusão está em outro estudo da CNT, divulgado no segundo semestre de 2017, sob o nome Transporte Rodoviário – Desempenho do Setor, Infraestrutura e Investimentos.
A entidade ouviu especialistas dos setores público, privado e também da academia, e considerou ainda resultados de auditorias realizadas por órgãos de controle. O entendimento é de que, quando se trata de pavimentação de rodovias, por exemplo, o Brasil utiliza metodologias ultrapassadas, apresenta deficiências técnicas na execução, investe pouco e falha no gerenciamento das intervenções e/ou manutenção das estradas.
De acordo com a Confederação, historicamente o governo federal deixa de executar cerca de 30% do orçamento de infraestrutura rodoviária autorizado anualmente. Isso provoca um déficit de investimento e faz com que o desgaste da malha rodoviária federal apenas se acentue com o passar do tempo.
“Entre 2004 e 2016, dos R$ 127,07 bilhões autorizados, apenas R$ 89,4 bilhões foram efetivamente desembolsados, ou seja, 70,4%”, ressalta o estudo, referindo- -se ao investimento dedicado por Brasília às rodovias federais.
O problema dos tributos
Costuma-se dizer, em tom de brincadeira, que as empresas no Brasil dedicam praticamente um setor para unicamente cuidar do pagamento de impostos. Não apenas pela quantidade, mas pela complexidade dos impostos pagos. Quem atua em mais de um Estado sabe muito bem das complicações relativas à política de tributação diferenciada em cada unidade da federação.
“O setor de transportes de cargas enfrenta basicamente dois tipos de problemas ligados à tributação que podem comprometer a saúde financeira de qualquer empresa. O primeiro deles é a alta carga tributária — hoje, o País é um dos líderes mundiais em tributação no setor. O segundo é a complexa legislação tributária, que gera dificuldades de manter as obrigações acessórias em dia. Alguns exemplos são o recolhimento de notas fiscais, a manutenção de livros contábeis, entre outros. Soma-se a isso a péssima infraestrutura rodoviária nacional, a falta de segurança nas estradas, e a Justiça Trabalhista que é completamente injusta e o transportador acaba sofrendo milhões de autuações por irregularidades da mercadoria”, afirma Lopes.
De acordo com ele, as empresas que necessitam do transporte rodoviário de cargas precisam lidar com fortes tributações provenientes tanto de impostos nacionais quanto estaduais. Isso gera uma grande arrecadação aos governos, mas encarece sensivelmente o transporte.
“Num país que depende do setor [de transporte rodoviário de cargas], é uma incongruência e uma inconsequência fazer uma tributação tão elevada, porque o transporte de cargas é um insumo básico de qualquer atividade. Não bastasse o peso dos impostos, o setor precisa enfrentar desafios e gastos adicionais decorrentes da má aplicação dos recursos arrecadados pelo poder público”, reclama.
(Falta de) Segurança
Há ainda a questão da insegurança que cerca aqueles que trabalham nas estradas brasileiras. Se as empresas precisam elas próprias investir em segurança, em tecnologia, em seguro contra roubos, etc., o preço naturalmente será aplicado sobre os produtos comercializados. Alguém acaba pagando a conta diretamente, mas os resultados indiretos desse cenário de insegurança refletem também a médio e longo prazos, prejudicando a saúde financeira das empresas, tenham elas o tamanho que tiverem.
Ainda que seja caro transportar mercadorias pelo Brasil, mais da metade dos transportadores (60%) afirma que a insegurança nas estradas representa a principal preocupação na profissão. “É necessário que haja um plano nacional integrado de combate ao roubo de cargas no País, com a união das Polícias e do Ministério Público, que inclua, dentre outras ações, a construção de pontos de parada com estrutura adequada para os motoristas; maiores penalidades para receptadores e revendedores de carga; a criação de delegacias exclusivas de repressão a esse tipo de delito nos Estados, como as que já existem em Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, Bahia e Pernambuco. E, ainda, a publicação de leis para caçar a inscrição estadual dos comerciantes que vendem produtos roubados, como já acontece no Espírito Santo e em Santa Catarina. A insegurança no transporte é um problema grave que necessita de soluções urgentes, pois atinge não somente os transportadores, mas toda a cadeia produtiva do País”, alerta Lopes.
Soluções
Dentre as principais soluções apontadas pelo presidente da ABTC com o intuito de melhorar a logística de quem atua de forma nacional, destaca-se a intermodalidade. Ou seja, a utilização de mais de uma modalidade de transporte, atingindo inclusive locais de difícil acesso.
“A intermodalidade demonstra bons resultados, tanto em redução de custos como em otimização de rotas. As vantagens atingem não só os operadores logísticos, mas toda a sociedade. Para os operadores, há a possibilidade de aumento de receitas; para expedidores e destinatários tem-se uma redução dos custos de transporte; e a sociedade se beneficia com a redução dos níveis de congestionamento nas rodovias e com a redução no número de acidentes e impacto ambiental”, completa, indicando outras sugestões a serem adotadas com o mesmo objetivo.
“Outras medidas para solucionar os entraves logísticos do País são: definir uma política nacional de transporte; reduzir o número de órgãos planejadores e reguladores do transporte (hoje são 14); simplificar documentos e processos exigidos na operação do serviço de transporte hidroviário (hoje são, no mínimo, 44); maior agilidade no desembaraço de cargas nos portos; investir continuamente em infraestrutura de transporte; propiciar segurança jurídica para a realização de investimentos; desburocratizar trâmites para implantação de infraestruturas logísticas privadas”, finaliza.
É preciso prevenir, para não ter de remediar. Um exemplo para demonstrar como o esforço tem sido direcionado para a estratégia errada é o custo que os quase 100 mil acidentes registrados em 2016 geraram ao governo brasileiro: R$ 10,88 bilhões. O investimento nestas rodovias no mesmo período foi menor que esta cifra: R$ 8,61 bilhões.
Melhorar o transporte significa gerar benefícios não apenas aos transportadores, mas também aos diversos setores que dependem da modalidade, e aos cidadãos, que sofrem os impactos tanto direta quanto indiretamente.
Escrito por: Redação