Presença de familiares na liderança das empresas não é sinônimo de amadorismo, desde que haja investimento em capacitação
No Brasil, um terço das novas empresas fecha as portas em até dois anos. Os números fazem parte do estudo Sobrevivência das Empresas no Brasil, realizado pela Fundação Getulio Vargas, em parceria com o Sebrae. Ainda que o mundo inteiro tenha passado por uma difícil fase em razão da Covid-19 e de suas consequências, o estudo não cita apenas as dificuldades financeiras como causas de fechamentos de empresas.
São muitos os motivos que podem levar uma empresa à falência ou ao simples encerramento, mas boa parte deles está relacionado à própria gestão do negócio. Erros na condução das empresas podem gerar danos enormes, impedindo, muitas vezes, que a companhia consiga ao menos se recuperar ainda que mude suas estratégias.
Em termos de gestão, durante muito tempo foi reforçada a máxima de que as empresas só poderiam optar por dois tipos de condução: a familiar e a empresarial. Assim, esses dois tipos de gestão sempre foram tratados de forma antagônica, como se um fosse completamente distinto do outro e sua coexistência ou integração fossem impossíveis.
Além disso, a própria gestão familiar passou a ser vista como sinônimo de fracasso. O prenúncio do insucesso, já que não obedecia às mais modernas diretrizes profissionais de gestão de empresas.
Ocorre que o tempo trouxe uma série de exemplos de empresas que seguiram uma gestão profissional e fracassaram (por diversos motivos), e também de marcas que seguiram rigorosamente uma estrutura familiar e conseguiram prosperar. O que se verifica, essencialmente, é que não basta apontar para o modelo de gestão para determinar as taxas de sucesso de um negócio. Afinal, erros e irresponsabilidades podem ocorrer tanto na condução profissional quanto na familiar.
Gestão familiar sem estigma
De acordo com a AMCHAM (Câmara Americana de Comércio), sempre existiu e ainda existe um estigma sobre empresas familiares e sua efetividade de mercado, sob o argumento de que decisões e planejamentos nesse modelo poderiam receber interferências de emoções que vão além da objetividade de uma gestão corporativa. No entanto, cerca de 90% das empresas brasileiras são de perfil familiar. E elas são responsáveis por 65% do Produto Interno Bruto (PIB) e por gerar 75% dos empregos formais no País.
“Ou seja, contar com parentes na administração e operação de um negócio não significa que os desafios relacionados a esse esforço serão insuperáveis. Muitas organizações crescem, consolidam-se e transformam-se a partir da vontade e dedicação de familiares. O importante é que todos entendam seu lugar na estrutura empresarial e tenham o mesmo foco de sucesso que você tem”, explica a entidade.
Ainda de acordo com a AMCHAM, sequer podemos considerar a gestão familiar como uma estrutura única. A empresa familiar tradicional é a mais comum, na qual todo o controle e operação estão sob posse de membros da família. Com capital fechado, essas empresas concentram as decisões e atribuições somente aos membros da família.
Já a empresa com trabalho de familiares consiste em uma marca de propriedade de um dos membros de maneira mais exclusiva, e ele incentiva o emprego de profissionais e colaboradores dentro da própria família.
No caso da empresa com administração familiar, há uma preferência por capacitação profissional, ainda que cargos de gestão e lideranças sejam ocupados por familiares. Dessa forma, quem assume esses papeis não são necessariamente as pessoas com maior controle ou mais experientes, mas aquelas que têm mais conhecimento na área em questão.
E há o caso também de empresas híbridas, no qual a empresa familiar começa a crescer, abre seu capital e se consolida. Assim, o controle nuclear do negócio permanece em família, mas a empresa investe em contratação e capacitação de gestores profissionais fora do núcleo familiar.
Independentemente do modelo, os desafios associados às empresas de gestão familiares são muito comuns. De acordo com o Sebrae, sem a capacitação necessária essas empresas costumam sofrer com questões que envolvem conflitos de interesses, falta de separação entre vida pessoal e trabalho, sucessão e planejamento da gestão.
“É por isso que se torna cada vez mais importante profissionalizar a gestão de empresas familiares, organizando processos e levando modernidade à visão do negócio”, aponta o Sebrae. Não se trata de simplesmente abandonar o modelo familiar, e sim de investir e apoiar a capacitação dos responsáveis pela liderança da empresa.
De acordo com o Sebrae, a profissionalização e a capacitação dos líderes das empresas têm o objetivo de atacar os seguintes problemas:
- Forte ligação emocional entre os membros da família e a empresa. Isso pode levar a conflitos e a decisões baseadas em emoções, e não baseadas na razão.
- Conflitos com relação à sucessão. Quando um membro se aposenta, quem fica em seu lugar? Ele terá a mesma capacidade de liderança do anterior? A questão da sucessão causa conflitos pessoais e profissionais à família.
- Falta de planejamento e falta de uma visão realista de futuro. Muitas vezes, essas empresas são geridas de forma reativa, sem um plano estratégico exato ou uma análise cuidadosa do mercado e da concorrência. Isso pode levar a problemas financeiros, à falta de competitividade e até mesmo ao fracasso da empresa.
Quando se fala em gestão, seja ela familiar ou profissional, o planejamento é fundamental. No caso do modelo familiar, entretanto, esse plano de ações é ainda mais importante, pois pequenos problemas podem crescer e, inclusive, ser ampliados pelo fato de que o líder está muitas vezes lidando com um parente próximo em uma crise.
Nesse sentido, o Sebrae indica algumas etapas para empresas que desejam planejar a gestão de um negócio familiar:
- Definir uma visão clara para a empresa, estabelecendo metas e objetivos em longo prazo. Essa é a base para qualquer empresa que deseja se manter no mercado, seja familiar ou não. Você pode começar pensando em propósito de marca, que ajuda a definir a visão do negócio.
- Fazer uma análise do mercado e da concorrência, identificando oportunidades e ameaças. Entender o mercado no qual sua empresa se encontra é fundamental para continuar navegando de forma sólida.
- Definir papéis e responsabilidades dentro da empresa, estabelecendo quem será responsável por cada área e definindo políticas de gestão de recursos humanos e financeiros. Essa parte pode ser delicada quando falamos em empresas familiares, mas é preciso entrar em comum acordo de que cada um necessita ter um papel bem definido e se ocupar de suas funções e responsabilidades.
- Criar um plano de sucessão eficaz, definindo quem assumirá a empresa no futuro e como será feita a transição. Trabalhar com incertezas quanto ao futuro pode gerar estresse, criando barreiras para o crescimento da empresa. É importante não ter medo dessa conversa e colocar o futuro do negócio em primeiro plano.
“O processo de planejamento da gestão de um negócio familiar deve ser conduzido com cuidado e atenção aos detalhes. É imprescindível envolver todos os membros da família nas tomadas de decisão e garantir que haja consenso sobre as diretrizes a serem seguidas”, aponta a entidade.
A questão do consenso é essencial na gestão familiar. Não significa esperar que todos concordem sempre com todas as decisões, mas de fomentar um entendimento entre as lideranças que não seja pautado simplesmente pelo “aceite”. Quem simplesmente “aceita” acaba, por vezes, “engolindo” determinadas situações que podem explodir em descontentamento posteriormente.
Orientações para a gestão familiar
Entre as principais orientações da AMCHAM para uma correta gestão familiar está a separação entre os laços profissionais e pessoais. Isso porque a conexão emocional entre as partes envolvidas na administração de uma empresa familiar pode gerar conflitos e/ou ampliar problemas.
“Empresas familiares precisam de uma separação muito bem definida do que é pessoal e do que é trabalho. Uma divisão que consiga deixar de lado questões familiares na hora da reunião de trabalho. Investir em tecnologia e inteligência de dados é uma boa ideia nesse caso, para que as decisões sejam cada vez mais baseada em informação de mercado e menos na relação entre quem decide”, aponta a entidade.
Outra orientação da AMCHAM diz respeito ao plano de sucessão. A entidade ressalta que cerca de 75% das empresas familiares fecham as portas após processos de sucessão mal sucedidos.
“Isso acontece porque, muitas vezes, o empreendedor original do negócio — um pai, uma avó — mantém muito do controle e da visão de mercado durante sua vida. O resultado disso é que os herdeiros da empresa dificilmente conseguem manter o nível de competitividade. Portanto, é crucial ter um plano de sucessão desde o começo da empresa. Principalmente se é você o líder desse empreendimento, faça questão de definir com clareza quem sucederá a gestão no futuro e também de preparar a pessoa para esse momento. Delegar, ensinar e se comunicar ajuda a incluir outros familiares no seu método de trabalho”, completa.
Vale destacar também a importância de um bom controle financeiro e de um planejamento claro de crescimento. É preciso que todos os familiares entendam e consigam diferenciar o que é dinheiro da empresa e o que é dinheiro da família.
“Investimentos, consolidação de reservas, pagamento de colaboradores, tudo isso deve vir antes da compensação. O pensamento a curto prazo faz com que muitas dessas pessoas limitem a capacidade de crescimento de uma empresa. Pensam apenas no ganho atual sem entender que o reinvestimento pode significar um patrimônio muito maior no futuro. A educação administrativa e o foco dos parentes fazem muita diferença para o futuro”, aponta a entidade.
Já o planejamento claro de crescimento faz diferença principalmente quando se considera que a empresa pode até ser controlada por uma família atualmente, mas isso não necessariamente deve ser verdade para sempre. Por isso, é muito importante traçar caminhos de crescimento, até para que os demais colaboradores e lideranças – que não fazem parte da família administradora – tenham segurança da confiabilidade do negócio.
Uma gestão familiar também não pode ser desculpa para uma comunicação ineficiente. Pelo contrário, boas práticas de comunicação, com transparência e eficácia, são determinantes para que as decisões de cada liderança e da empresa como um todo não sejam questionadas posteriormente.
O modelo de gestão familiar deve deixar de ser visto como um estigma que muitas vezes impede que as empresas projetem crescimentos efetivos e duradouros. Para isso, o alinhamento entre familiar e profissional é essencial para garantir um modelo que priorize as virtudes e os benefícios de cada um dos tipos de gestão.
Escrito por: Redação